sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Dei um gelo nela (o poema da geladeira)



Estava há uma semana vazia...
Fazia dias que ela não gelava senão água.
Até que choveu na minha conta outro dia:
Saí, comprei aves, peixes, lagostas, camarões...
Olhei pra ela, estava cheia.
Chuchus sorriam pra mim: há quanto tempo... diziam.
Uvas e beterrabas batiam palminhas do reencontro
Até a galinha morta era feliz por mim. Dormi pensando em receitas boas.
Acredita que de manhã um carrasco havia sido pago pra levá-la?
Ela que nunca foi totalmente minha.
Liguei pra dona, me humilhei sozinha dentro do discurso justo de que sou artista
e por isso inconstante na economia. E a dona nada. Não cedia.
O carrasco ia levar minha deusa, minha neve possível, minha geada de estimação.
À hora marcada, chorei agarrada àquela cônsul mimada demais por mim;
Tão adotiva, tão afetiva... eu atracada a ela, pedia, gemia...
E ela, nada; ela fria, desligada, já não me dava nem gelos.
Fiquei sem patrimônio. Sem preservação de alimentos.
Fiquei sem centro, a zombar de mim.
Até que me lembrei dos meus bens: a coragem, a beleza, a força, a poesia, a esperteza.
coisas que não se encontram em pontos-frios,
coisas que não são substituíveis por um isopor.
Então já amanheci pondo coentros nas jarras como flores!
Curei minhas dores sem congelamento.
Me virei por dentro onde tudo é mantido quente vivo.
Tirei tudo de letra e de ouvido
como quem tira uma música!

(Elisa Lucinda)